quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Uma Mêja no Penêu

Trancados no carro, prestes a sair para comprar outra caixa de cerveja, Edson puxa uma conversa séria com o amigo brasileiro. Olha fundo nos olhos azuis do mulungo e afirma em tom macabro: “...Luix Paulo, eu dei uma mêja no seu penêu...”


Já caía a madrugada na distante Machamba (sítio) do irmão mais velho do Edson. Nada em volta: energia ainda não chegou, o gerador queimou... os grupos então se reuniam ao redor das fogueiras.

Os homens são quase todos da família Mabote. As senhoras se dividem entre as da região, convidadas para comparecer ao evento e as que têm Mabote no sobrenome. A maior parte das esposas não foi convidada, só as que cuidavam da comida e da limpeza.

As dez caixas de cerveja, mal distribuídas sob o rígido controle do dono da casa, deixou a alguns embriagados-de-cair-no-chão e a outros com sede. Eu me encaixei no segundo grupo, como tinha chegado tarde, e não queria usar da minha branquice para pedir uma, sabendo que não teriam como negar.

O irmão do Edson, Sérgio, tinha o motivo da festa bem claro. Segundo o Edson, “é pra mostrar pra família que tem muuuito dinheiro mesmo. Tás a ver, Luix Paulo?” E assim se reuniram 50 Mabotes para beber, conversar e dançar. Ah! E comer! Uma refeição a cada 2 horas.

As danças também são um caso à parte. Ao som de canções pop moçambicanas dos anos 80 tocadas num reprodutor de K7 ligado a uma bateria de caminhão as mulheres de capulana e os homens de tênis Naike batido balançavam o esqueleto.

Logo na primeira hora Sêo Adriano – pai do Edson e recém-casado – me incentivou a sair e comprar mais cerveja. Um frio europeu na roça moçambicana. A lua minguante iluminava o suficiente para vermos o caminho, sem roubar o palco das estrelas, que controlavam o show pintando o céu negro com um brilho multi-colorido. Entramos no carro. Edson liga a luz de dentro do carro. Seu rosto negro estampa um sorriso de nervosismo, preocupação, angústia. Está ansioso para me contar algo. A luz batendo de cima abaixo deixava no lugar dos olhos um oco. Com um tom macabro vira-se para mim e diz:

- “heee (risada nervosa) O Luíx Paulo conhece as tradições africanas... magia, feitiço, maldições, bruxos... Luix Paulo, eu dei uma mêja no seu penêu da frente. Iá! Aquele ali do motorista.”

Eu, procurando algum sinal de que o rapaz estava brincando, percorri com os olhos todos os cantos da cara já enrugada do costume em esticar-se para dar lugar ao sorrisão. Desta vez era só escuro. Os olhos finalmente saíram do breu e encontraram-se com os meus. Era sério. Fiquei assustado... “Que porra é essa, Edson?”

- “É pra proteção do Luix Paulo. Táj a ver, Luix Paulo, quando saímos de casa, sempre temos que fazer isso. Agora podem mandar feitiço, bruxaria, macumba, o que for, que o Luix Paulo sai ileso. Se tiver um acidente, o Luix Paulo sai ileso. Até se for cair um carro na cabeça do Luix Paulo, há de arranjar um jeito de escapar. Você não vai saber como escapou, mas eu sei!”

- “Obrigado, Edson. Vamo comprar cerveja”

- “O Luix Paulo vai dar a mêja no penêu da frente?”

- “Vou sim. Na volta”. Encaixa a ré e vai.



Cerveja não havia. A barraca que vendia estava com o candeeiro apagado. Ou seja: fechada. Com o passeio o carro ficou ainda mais arranhado devido aos arbustos secos que invadiam a estrada de terra batida. Ou seja, somando com a comida com poeira, a falta de cerveja, a música ruim, e que poucas pessoas falavam comigo, minha paciência estava se esgotando. A essa altura eu já estava começando a investigar qual seria o colchãozinho a me esquentar pela noite.

Lá pelas tantas chega o Edson com jeitinho para introduzir más notícias.

- O Luix Paulo prefere dormir no banco da frente ou no de trás?

- Coméquié, Edson??

Nesse ponto minha alergia já estava detonando por causa do frio misturado com a poeira do chão de terra pisoteado constantemente pelas sandálias e tênis Naike dos bailarinos bêbados, e pelas crianças que corriam um circuito infinito em volta das fogueiras para garantir que cada grão de poeira atinja seu destino: misturar-se ao nosso arroz, sujar nossa roupa ou alojar-se no nariz. A pior opção.

Mas o que mais me irritou na festa foi uma senhora que já estava pra lá de Marrakech, que pirou com a minha presença, como representante do povo mulungo (branco). Apertava minha mão repetidamente, pressionando o centro com o dedo indicador... beijava meu rosto... “dá cá um bá! dá cá um bá!”... me abraçava... “Oh,meu deus! Eu quero um filho como você! Eu quero um filho assim! Traduz pra ele, Mabote! Minha irmã já tem um filho assim!!”

Eu, muito cortês, aceitei toda a emoção, uma vez que era uma senhora, e que estávamos na frente de toda a festa. Disse-lhe: - Assim, como minha senhora? Alto?

Mais tarde me explicou que queria um filho mulatinho, como eu. Que graça! Só se for moreno. Descendente dos Mouros. Arabinho, Napolebanês, Lusonapolebanês, Lusobrazilebanapolitano.

Mas o momento em que desisti mesmo da festa foi quando essa senhora saiu da fogueira dela, engatinhando até a varanda onde eu estava. Ao chegar ali caiu no sono, deitada no chão. Que alívio, pensei. Depois de meia hora levanta-se a nobre senhora, se coloca de joelhos e começa a bater palmas a um metro dos meus pés, tamanha a felicidade. Quando ela estava a 20cm de prostrar-se diante de mim, levantei-me e fui ao carro dormir. No caminho ainda fui bombardeado com gritos de “Hey, whitey! Hey whitey, come here!!”


Insuportável sentir-se discriminado. Só o que dei a eles foi um tratamento normal, indiferenciado em relação ao que dou ao meu chefe, por exemplo. Apertos de mão, sorrisos, conversas... e o que ganho em troca é quase uma devoção. Ao invés de me dar em troca o que espero – ser tratado como um deles, ou como o que realmente sou – me colocam num pedestal a três metros de qualquer sentimento real. Expressões orais, faciais, corporais... tudo é forjado diante de mim. Estou cansado dos sorrisos, de ser tratado como Deus, de ser o primeiro a ser servido, de ganhar um “boa tarde”, enquanto o do meu lado, nem um sorriso...

Bem, dormimos. A parte boa da noite foi que não fez frio. E má foi o motivo do calor: os corpos melados exalando tanto suor quanto álcool. Edson pergunta “posso tirar o sapato, Luix Paulo?” - Nãão!!


Enfim, o livro de magia negra do Edson tá faltando algumas páginas. As contra-indicações da Mêja no Penêu. “Se usado a favor de brasileiros pode ter efeito contrário”. Hoje acordei com conjuntivite, gripe e mau humor. Xixi dos infernos!

Por: Luís Paulo R. Camisasca. Primavera de Maputo, 2007

8 comentários:

Ahmed Hamdan disse...

Lu,

Bem-vindo à blogosfera! Nunca me imaginei falando isso, como já citei por e-mail. Mas esse lance de preconceito às avessas não dói muito não, né? Preconceito que dói é o na lata mesmo. Abção e escreva mais e sempre!Primo ou, na blogosfera, Disarmed.

Felipe disse...

Meu, ri pra caraliiiiooo!!! Vc tem q escrever mais, ainda mais q vc mandou bem paks nesse post!!! E eh bom vc foto sua depois de tanto tempo!!!! To com saudade de vc bro!! Abracao, Mascote

anapeps disse...

Lpzim!! Cê fez um blog, rapaiz?
Que emoción!!
Que saudades de você!! Outro dia estivemos no Caliu e adivinha de quem nos lembramos? hehehehehe O buteco tem mais fumaça que água na brasa e tem plaquinha de "proibido fumar" por todos os lados, hahahahhaahahah!
Cara, adoro seus textos, racho de rir e fico imaginando a situação... Como é que vc foi parar nessa festa? São culturas diferentes demais; "ensinaram" pra eles que existe superioridade por causa da cor, ou da origem, ou da classe social... E eles aprenderam!
Beijo grande, querido!! Ana P.

rgr disse...

Oi Lu.Que relato ótimo.Quantas sensações num único evento. Muita informação.Muito rico tudo isso, mesmo com as páginas rasgadas do livro de magia.Muito bom. Abraços.
Tio Rô.

LP Camisasca disse...

Olá tio rô, ache, mascote e AP!

Valeu pelo carinho. Realmente o preconceito às avessas nao dói. Às vezes é engraçado, e outras, irritante.

Concordo que esse comportamento foi ensinado aos colonizados. No entanto Moçambique é um dos poucos países africanos onde nao se desenvolveu um "black pride". Parece que a guerra acabou nao só com o país, mas também destruiu a moral do povo... mas é uma opiniao. Nao posso afirmar.

Valeu de novo! Vou postar mais um hoje. Continuem lendo.

Braço e beijos,

LP - Luis

LP Camisasca disse...

Opa! Esqueci de explicar uma da Ana.. Fui parar lá por causa do meu amigo - Edson - que é segurança do Hotel Ibis, logo ao lado de onde trabalho.

A explicaçao está no casamento do pai dele tambem. O sêo Adriano. Vou colocar esse texto em pedaços pra entender-se melhor.

- Que saudade do Caliu!! Do Barça! Da estrella, da croqueta e de vocês! (em ordem inversa)

Anônimo disse...

Querido LP

Gobbi acaba de me passar o endereço de seu Blog e ainda não tive tempo de olhar muito.

Quarta feira fomos tomar uma cervejinha (Gobbi e eu) e o assunto era a saudades dos amigos:Você Andrezza e Renato.

Gostei de ter notícias suas e saber que está tendo essa rica experiência. Vou conhecer melhor o seu Blog e depois mando comentários.

Envie seu endereço para e-mails. O meu é:taniavc@intervip.com.br

bjs e saudades
mãe Tânia

LP Camisasca disse...

Nóóó! Mãe Tânia!! Saudades também...

Já mandei e-mail.

beijos