segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Personagens da Minha Vida Moçambicana - Parte 1

Proprietária dos Infernos

Dona Rosana é uma senhora de sessenta e tantos. Moçambicana, mae de vários, um marido, dona de diversos imóveis alugados, meio matrona, deve pesar seus 70 quilos. Aproveitou-se da época pós-independencia quando um terreno em Maputo custava algumas centenas de dinheiros para preparar bem sua aposentadoria. Cada imóvel é um negócio, e tem que ser rentável. Investimento mínimo – desafiando as leis da ética – e receita máxima. Meu apartamento é um desses.

Essas táticas de duvidosa ética por parte de Dona Rosana incluem: inocência, falta de memória, “pobreza absoluta” (termo usado pelo presidente Guebuza para definir o estado do País), “Joao sem Braço”, “olha-para-baixo-olha-para-o-lado-e-fica-muda”, e a pura e deslavada mentira.

A aplicaçao das supracitadas é mais ampla do que se imagina, quando se trata de ganhar dinheiro em cima do mais absurdo. Os primeiros casos que sofremos isso foi logo na compra, quando ela nos prometeu uma reforma geral e completa do Apê. Logo que chegamos isto fedia a tempero curry (indiano) podre. Na verdade parecia uma cozinha indiana largada aos ratos por seis meses. O fedor era tao intenso que nao se respirava ali. A descriçao que faço é baseada no odor captado na varanda da casa.

- Isso fede a curry hein, Dona Rosana? Tinha um indiano morando aquí? (piadinha)
-Hein? Indiano? Siiimm…
- Ahn! As vezes é isso entao…?
-Claro! É que ele nao limpava bem isto. Mas vai vir uma equipa especial de limpeza, vai tirar todos os armários, limpar por dentro, passar verniz, pintar atrás… quando chegarem isto já vai cheirar a lavanda fresca…
-Aaahn… jóia.

Quando chegamos, uma semana mais tarde, a impressao que dava era que a equipa especial era na verdade um grupo de crianças da segunda série que veio fazer excursao da aula de artes na minha casa. Os armários nem tinham sido retirados, a parede tava pintada em volta deles. Passaram um “panim” por dentro, deixando todas as baratas – em todas os estágios de evoluçao – nas frestas das portas. E o cheiro… aah, o cheiro... aquilo subia pelas narinas, bloqueava as vias respiratórias, e rapidamente conquistava o cérebro, estimulando a criaçao de enzimas do mau humor. Isso tinha que ser resolvido. Pegamos pano, bucha e faquinha (pros ovos ativos e inativos de barata) e fomos à luta.

Passamos o dia inteiro para acabar aquela merda (era só uma parte da casa inteira que tava nojenta). Tinha que descer o armário, lavar bem por dentro, tirar as baratas, lavar atrás, passar baigon, pendurar de novo. Sao tres armários horizontais de 3 metros cada. Acabado o trabalho, o alívio… vitória… respira fundo…. Nao!! Continua a p… do cheiro com força total! Fomos fungando embaixo de tudo, e descobrimos. A geladeira estava mijando. Tinha uma poça de água nojenta embaixo, de cor amarelo intenso e jeitinho de suquinho de carne podre.

Lavamos a geladeira até cair o braço. Nao adianta, a carne foi esquecida ali dentro, o suquinho de esgoto caiu no sistema interno de “lavagem”. Ok! Chama a assistencia tecnica. Vem um cara simplezinho, puxa aquela mangueirinha externa, olha dentro dela… sopra… olha para mim:

- é, patrao! Tá entupido! Tem que limpar!
-
Beleza

Já olhei para bolsa dele esperando que ele fosse tirar o equipamento. Quando olho para cima “suck”, o cara com a boca metida naquela fonte de restos mortais de carne putrefata. Igual pivete roubando gasolina de carro, ele sugava aquele líquido e fazia um esforço para tirar a boca dali antes do esgoto atingir os lábios. Nem sempre fugia a tempo, claro.

Apesar do serviço de alta qualidade, depois de 2 dias o cheiro continuava. Tive que reclamar e chamá-lo de volta. Coitado. Depois da quinta vez, desisti e coloquei um carvao lá dentro daquele trem. Obrigado, mae.

Mas o importante foi a reflexao após o evento. Horas depois, penso… ué!? O cheiro ruim nao era pelo tempero do indiano? Tudo história para vender casa.

Mas isso era só uma das promessas de reforma. Outra foi de subir a altura do chuveiro. Ok! Comprou o chuveiro e mostrou. Tinha até altura regulável. Na hora do primeiro banho vou testar… é... realmente é regulàvel, só que a altura máxima era igual à do anterior. Por que fazer isso com o cidadao? Nao sei, mas algum motivo tem que haver.

A mais recente história, que gerou a raiva suficiente para escrever isto, foi a história da energia elétrica. Além de ter me enrolado por meses para pagar as contas antigas (o que gerava cortes semanais no fornecimento), ela vem me pedir:

- Sr. Luix Paulo, eu extou a trabalhar aquí ao lado do prédio agora, e queria saber se nao tinha como a gente fazer um negócio juntos…
-
Claro, Dona Rosana. Diga lá.
- Aquí nao chega bem a energia, entao queria saber se eu podia puxar um fio do seu apartamento, e no final do mes eu te pago metade da conta.
- O que? Fazer um gato?
-
Gato? Nao… puxar energia do seu apartamento pro meu escritório… e eu pago metade da sua conta de energia.
-
(pensando em me dar bem, mas já esperando o próximo golpe) tá bom. Nao há problema.
-
Tá bom. Vou mandar o eletricista subir entao.
-
Ok. (trouxa)

Até este ponto sei que o prezado leitor já está pensando “putz! Que idiota!”, mas também nao tem a menor idéia de como eu posso me dar mal nesta, a nao ser que ela enrole o pagamento… mas da mesma forma eu poderia descontar do meu pagamento de aluguel. Mas lembrem-se que ela é a proprietária dos infernos, e é capaz de tudo.

Depois de duas semanas, pergunto-lhe:

-
E aí, Dona Rosana?! Fez o esquema?
- Aah! Nao. Resolvi colocar um contador pré-pago mesmo. Daqueles que quando voce coloca, voce só paga a quantidade que consome…
-
Hummm… que ótimo. E é caro?
-
Nao. Se quiser faço um para voce também.
- Claaro! Fantástico.

Enfim. Apago da minha memória o trato feito, né? Afinal de contas, ela já tá com um contador pré-pago.

Vou ao Brasil, tranquilo. 20 dias… férias... volto… po! Essa janela da cozinha nao fecha!? Que que é esse fio branco aqui saindo da caixa elétrica e que passa por cima da janela rumo ao pátio externo do pré... DONA ROSAAAAANAAAA!!!!!!

Quer dizer, a ilusao utilizada foi um pouco menos complexa do que tirar moeda da orelha de criança... "olha! que que é aquilo lá? o super-homem?" e foge... balançar uma mao na sua frente pra arrancar seu dinheiro com a outra... pedir 10 reais emprestados e logo fingir que nao se lembra...

por: Luis Paulo R. Camisasca. Verão de Maputo, 2008