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“É bem provável que as perspectivas de paz no mundo contemporâneo dependam do reconhecimento da pluralidade das nossas afiliações e do uso da nossa reflexão, assumindo-nos enquanto vulgares habitantes de um vasto mundo, e não como reclusos encarcerados em pequenos compartimentos.” Amartya Sen, Identidade e Violencia, 2007.
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Vem da certeza de uma menina, mulher, meio-prostituta moçambicana a minha inquietude maior em relação a este tema. Moradora dos subúrbios da cidade metropolitana da Matola, vizinha de Maputo, ela não teve acesso a estudos, e tem como fonte de renda uma filha de cabelos claros, fruto do relacionamento com um francês. De cor branca, mais branca que eu, lábios grossos, nariz arredondado mas não achatado, olhos puxados e negros com lentes azuis, cabelos lisos, fruto do milagre das extensões capilares, sem bunda, magra, afirma:
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- Sou negra!
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Na hora, ri. Negra? Fiz o que imagino que todos devem ter feito em situação similar, inspecioná-la em detalhe, tentando classificar cada traço com uma origem. É sério? Você é negra?
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- Sim (sem graça, constrangida pela minha reação pouco delicada)
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É negra sim, e daí? Cada um de nós deve ter a liberdade de se classificar da forma que julgar mais adequada. Ao invés disso, no entanto, o que predomina ainda hoje, é uma classificação universalmente aceita, que leva em consideração a origem, a cor, a religião, o gênero.
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Eu sou fruto de uma mistura total. Já tentei descobrir todas minhas afiliações e já me cansei. Árabe, Europeu, Negro, Índio, Judeu, e Brasileiro. Essa última categoria serve para descrever os bisavós que já habitavam na terrinha antes de alguém ter interesse em registrar de onde vêm.
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Sou homem, sou mulher, sou bicho, sou católico, ateu, branco, árabe, judeu, empregado, chefe. Sou feliz, sou depressivo, sou brasileiro, italiano, libanês, e de onde mais quiser. Se eu me sentir assim... (Tio Ache, seguimos em conexão nos pensamentos)
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São os outros que exigem uma identidade única e classificável. As pessoas nos conhecem por tempo determinado, e precisam de um rótulo para facilitar nossa leitura e classificação. Aquele é o Luis, o brasileiro. Aquele é Paulo, o negro. Aquele lá é Márcio, o muçulmano, e o outro é o Camilo, o crente.
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Se fosse só um lembrete pra ajudar a gravar os nomes e caras, tudo bem. No entanto, sabemos que a divisão em classes pode ser bombástica. Mais uma vez uso o exemplo de Ruanda. Uma pessoa que historicamente é simplesmente de Kigali, agora passa a ser um Tutsi de Kigali. E aquele outro, com o nariz achatado e mais escurinho é um Hutu de Kigali. Isso definido por olhos alheios àquela realidade. Como numa divisão de time de futebol, separam um grupo para cada lado. Depois de algum tempo vê-se o resultado. Carnificina.
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O rótulo, que foi útil para facilitar a classificação, serve agora como um nicho de uma estante, onde serão guardados todos os atributos relacionados àquele grupo. Vemos três, quatro, cinco vezes no jornal a foto de um negro cometendo um crime, pois metemos na estante do negro: criminoso. Vemos um travesti na rua assediando pessoas e causando confusão: homossexuais são escandalosos e causam confusão. Vemos dez, vinte, trinta ataques terroristas executados por grupos radicais islâmicos: muçulmanos são terroristas.
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Nossa mente simplista (não canso de repetir) insiste em querer achatar, simplificar e encaixotar as coisas. Parece que somos eternos preguiçosos mentais. Dá muito trabalho parar e conhecer alguém, é muito mais fácil metê-lo num baú e seguir em frente com a minha vida, relacionando-me com meus similares.
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Ora, eu não sou o, sou um. Deixe-me na minha inclassificaçao*. Quero mesmo ser um vulgar habitante desta Terra. Os franceses vêem-me como italiano, os italianos, como brasileiro, os brasileiros como uma ovelha desgarrada, os moçambicanos como chefe representante do primeiro mundo e tudo que é bem feito. Os católicos do Brasil vêem-me como um descrente, os europeus como um conservador catolicista, e os moçambicanos nunca me perguntaram.
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A única coisa que vejo em comum em todos é o afã de me categorizar, me rotular, me reduzir à ilusão da singularidade (teoria do escritor citado no início).
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Eu (voltando a mim), desde criança sofro com isso. Uma vez, aos poucos anos de idade, ousei gritar ao meu vizinho “playboy!”, ao que ele respondeu “sim, sim. Sou playboy mesmo. Pelo menos sei o que sou. E você, o que que é?”. Entrei em casa, humilhado. Na escola, por muitos anos eu era considerado gay. Por outros, nerd. Logo, maconheiro, depois playboy, depois CDF, seguido de mulherengo, e logo já parei de acompanhar devido à distância. E sempre com uma pressão interna – e externa – por escolher e ser reconhecido por um desses rótulos, ou outros vindouros.
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Extrapolando mais um passo, a pluralidade da nossa identidade não é só caminho para nossa própria liberdade, mas sim uma saída para a paz entre os povos. Por que, em vez de buscarmos as diferenças entre nós, não buscamos as semelhanças?
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Vejo, por exemplo, na gravidez da mulher uma grande esperança. Quem não olha para uma grávida com olhos brilhantes e um sorriso na cara? Ou mesmo uma mulher com um bebê nos braços. É o ponto comum entre todos nós. Somos todos bicho. Por muito tempo tivemos várias grávidas na Total. Eu tinha uma alegria diária em cumprimentá-las, elas também, cheias de luz.
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Cada uma delas representa a esperança. Sim, acredito também nisso. Quando voltamos à casa, nossa realidade é via de regra similar. Temos que cuidar da nossa família, pagar as contas, alimentar o cachorro, mijar, cagar, comer... Somos assim vulgares, comuns.
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A ilusão da identidade vem também, em minha opinião, da nossa arrogância em almejar ser algo maior, especial. Todos queremos ser reconhecidos como únicos, queremos o conforto de pertencer a um grupo. Nós, Hamdan, somos bonitos, os outros são feios. Nós, homens, somos grandes políticos e estrategistas, as mulheres nem dirigir sabem. Comentários geralmente seguidos de risadas, provavelmente resultado do contentamento em pertencer.
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Mesmo nas relações amorosas isso fica evidente. Por mais que o que cada ser humano pode oferecer seja basicamente idêntico, nós queremos sempre ser reconhecidos pelo nosso parceiro como alguém especial. Isso é uma batalha constante. No trabalho, sentimos que somos únicos. Muitas vezes pensamos honestamente que não podemos sair de férias, senão “quem vai fazer o meu trabalho por mim?”. Ora, vamos lá! Submetamo-nos à simplicidade do nosso ser! Este sim é o caminho da grandeza.
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Eu, enquanto isso, sigo no conforto da inclassificação. Sou tudo, sou todos. Sim, sou todos. Sou várias pessoas. Mesmo as palavras que passam por mim vêm de todo lado. Da minha mãe, do meu pai, das minhas leituras, do livro que estou lendo, dos jornais que leio. Somos apenas um prisma trincado, repassando parte daquilo que é direcionado a nós.
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obs:
1. a palavra inclassificação não existe no dicionário. deveria.
2. outras palavras também possivelmente nao existem
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Por: Luís Paulo Camisasca. Inverno 2008 em Maputo,
semi-nu no quarto, cheio de frio e
vinho tinto Boland Kelder Pinotage
safra 2005 na cabeça.
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Pessoas de quem roubei idéias mais directamente: Amartya Sen, Oscar Wilde, Tio Ache, e sem querer da Marina Lima (da cançao "inclassificável", mencionada pelo meu tio no blog Disarmed)