segunda-feira, 17 de novembro de 2008

E se Obama fosse africano? - Por Mia Couto

Mia Couto é um dos
maiores escritores moçambicanos
e provavelmente o mais conhecido no exterior
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Os africanos rejubilaram com a vitória de Obama. Eu fui um deles. Depois de uma noite em claro, na irrealidade da penumbra da madrugada, as lágrimas corriam-me quando ele pronunciou o discurso de vencedor. Nesse momento, eu era também um vencedor. A mesma felicidade me atravessara quando Nelson Mandela foi libertado e o novo estadista sul-africano consolidava um caminho de dignificação de África.

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Na noite de 5 de Novembro, o novo presidente norte-americano não era apenas um homem que falava. Era a sufocada voz da esperança que se reerguia, liberta, dentro de nós. Meu coração tinha votado, mesmo sem permissão: habituado a pedir pouco, eu festejava uma vitória sem dimensões. Ao sair à rua, a minha cidade se havia deslocado para Chicago, negros e brancos respirando comungando de uma mesma surpresa feliz. Porque a vitória de Obama não foi a de uma raça sobre outra: sem a participação massiva dos americanos de todas as raças (incluindo a da maioria branca) os Estados Unidos da América não nos entregariam motivo para festejarmos.

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Nos dias seguintes, fui colhendo as reacções eufóricas dos mais diversos recantos do nosso continente. Pessoas anónimas, cidadãos comuns querem testemunhar a sua felicidade. Ao mesmo tempo fui tomando nota, com algumas reservas, das mensagens solidárias de dirigentes africanos. Quase todos chamavam Obama de "nosso irmão". E pensei: estarão todos esses dirigentes sendo sinceros? Será Barack Obama familiar de tanta gente politicamente tão diversa? Tenho dúvidas. Na pressa de ver preconceitos somente nos outros, não somos capazes de ver os nossos próprios racismos e xenofobias. Na pressa de condenar o Ocidente, esquecemo-nos de aceitar as lições que nos chegam desse outro lado do mundo.

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Foi então que me chegou às mãos um texto de um escritor camaronês, Patrice Nganang, intitulado: " E se Obama fosse camaronês?". As questões que o meu colega dos Camarões levantava sugeriram-me perguntas diversas, formuladas agora em redor da seguinte hipótese: e se Obama fosse africano e concorresse à presidência num país africano? São estas perguntas que gostaria de explorar neste texto.

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E se Obama fosse africano e candidato a uma presidência africana?

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1. Se Obama fosse africano, um seu concorrente (um qualquer George Bush das Áfricas) inventaria mudanças na Constituição para prolongar o seu mandato para além do previsto. E o nosso Obama teria que esperar mais uns anos para voltar a candidatar-se. A espera poderia ser longa, se tomarmos em conta a permanência de um mesmo presidente no poder em África. Uns 41 anos no Gabão, 39 na Líbia, 28 no Zimbabwe, 28 na Guiné Equatorial, 28 em Angola, 27 no Egipto, 26 nos Camarões. E por aí fora, perfazendo uma quinzena de presidentes que governam há mais de 20 anos consecutivos no continente. Mugabe terá 90 anos quando terminar o mandato para o qual se impôs acima do veredicto popular.

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2. Se Obama fosse africano, o mais provável era que, sendo um candidato do partido da oposição, não teria espaço para fazer campanha. Far-Ihe-iam como, por exemplo, no Zimbabwe ou nos Camarões: seria agredido fisicamente, seria preso consecutivamente, ser-Ihe-ia retirado o passaporte. Os Bushs de África não toleram opositores, não toleram a democracia.

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3. Se Obama fosse africano, não seria sequer elegível em grande parte dos países porque as elites no poder inventaram leis restritivas que fecham as portas da presidência a filhos de estrangeiros e a descendentes de imigrantes. O nacionalista zambiano Kenneth Kaunda está sendo questionado, no seu próprio país, como filho de malawianos. Convenientemente "descobriram" que o homem que conduziu a Zâmbia à independência e governou por mais de 25 anos era, afinal, filho de malawianos e durante todo esse tempo tinha governado 'ilegalmente". Preso por alegadas intenções golpistas, o nosso Kenneth Kaunda (que dá nome a uma das mais nobres avenidas de Maputo) será interdito de fazer política e assim, o regime vigente, se verá livre de um opositor.

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4. Sejamos claros: Obama é negro nos Estados Unidos. Em África ele é mulato. Se Obama fosse africano, veria a sua raça atirada contra o seu próprio rosto. Não que a cor da pele fosse importante para os povos que esperam ver nos seus líderes competência e trabalho sério. Mas as elites predadoras fariam campanha contra alguém que designariam por um "não autêntico africano". O mesmo irmão negro que hoje é saudado como novo Presidente americano seria vilipendiado em casa como sendo representante dos "outros", dos de outra raça, de outra bandeira (ou de nenhuma bandeira?).

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5. Se fosse africano, o nosso "irmão" teria que dar muita explicação aos moralistas de serviço quando pensasse em incluir no discurso de agradecimento o apoio que recebeu dos homossexuais. Pecado mortal para os advogados da chamada "pureza africana". Para estes moralistas – tantas vezes no poder, tantas vezes com poder - a homossexualidade é um inaceitável vício mortal que é exterior a África e aos africanos.

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6. Se ganhasse as eleições, Obama teria provavelmente que sentar-se à mesa de negociações e partilhar o poder com o derrotado, num processo negocial degradante que mostra que, em certos países africanos, o perdedor pode negociar aquilo que parece sagrado - a vontade do povo expressa nos votos. Nesta altura, estaria Barack Obama sentado numa mesa com um qualquer Bush em infinitas rondas negociais com mediadores africanos que nos ensinam que nos devemos contentar com as migalhas dos processos eleitorais que não correm a favor dos ditadores.
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Inconclusivas conclusões

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Fique claro: existem excepções neste quadro generalista. Sabemos todos de que excepções estamos falando e nós mesmos moçambicanos, fomos capazes de construir uma dessas condições à parte.
Fique igualmente claro: todos estes entraves a um Obama africano não seriam impostos pelo povo, mas pelos donos do poder, por elites que fazem da governação fonte de enriquecimento sem escrúpulos.

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A verdade é que Obama não é africano. A verdade é que os africanos - as pessoas simples e os trabalhadores anónimos - festejaram com toda a alma a vitória americana de Obama. Mas não creio que os ditadores e corruptos de África tenham o direito de se fazerem convidados para esta festa.
Porque a alegria que milhões de africanos experimentaram no dia 5 de Novembro nascia de eles investirem em Obama exactamente o oposto daquilo que conheciam da sua experiência com os seus próprios dirigentes. Por muito que nos custe admitir, apenas uma minoria de estados africanos conhecem ou conheceram dirigentes preocupados com o bem público.

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No mesmo dia em que Obama confirmava a condição de vencedor, os noticiários internacionais abarrotavam de notícias terríveis sobre África. No mesmo dia da vitória da maioria norte-americana, África continuava sendo derrotada por guerras, má gestão, ambição desmesurada de políticos gananciosos. Depois de terem morto a democracia, esses políticos estão matando a própria política. Resta a guerra, em alguns casos. Outros, a desistência e o cinismo.

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Só há um modo verdadeiro de celebrar Obama nos países africanos: é lutar para que mais bandeiras de esperança possam nascer aqui, no nosso continente. É lutar para que Obamas africanos possam também vencer. E nós, africanos de todas as etnias e raças, vencermos com esses Obamas e celebrarmos em nossa casa aquilo que agora festejamos em casa alheia.

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Augusto Cuvilas - Coreógrafo Moçambicano

Ontem fui a um espetáculo de dança criado por Augusto Cuvilas, conhecido coreógrafo e bailarino moçambicano. A peça, apesar de ter dado a impressão de improviso na maioria do tempo, teve momentos de beleza que emocionaram.

Chama-se "Um Solo Para Cinco". As mulheres, na maior parte do tempo completamente nuas, dançam num chão coberto por folhas secas, e com iluminação sutil. O movimento e a interação dos corpos cria um efeito visual fantástico.

Mas o que mais chama a atenção é a história de violência assustadora que serve de pano de fundo para a coreografia apresentada nesse Solo para Cinco.

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Madrugada do dia 22 de Dezembro de 2007. Polícia, ambulância, jornais, revistas, televisão. Um corpo morto no chão. Negro, com cabelo rasta, vinte-e-poucos anos.

Poucas horas antes, uma cena de assalto na casa de Augusto Cuvilas. Pessoas armadas invadem sua casa declarando o roubo. Cuvilas consegue se desvencilhar dos ladrões e ligar para a polícia, que consegue chegar a tempo para flagrar o delito.

Os policiais chegam, batem na porta, e entram na casa agressivamente atirando antes para fazer perguntas depois. A primeira vítima foi o jovem rasta, negro. Não tiveram dúvida, atiraram para matar. Era o Cuvilas.

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A morte do coreógrafo chocou o país inteiro. Como pode a pessoa que chamou a polícia tomar um tiro mortal? Começamos a pensar se vale a pena chamar a polícia ou se é melhor deixar o ladrão agir!

Os policiais estão armados até os dentes com equipamento herdado do tempo da Guerra. Metralhadoras, fuzis, automáticas, etc. Excessivo para o policiamento civil cotidiano. E excessivo para pessoas sem treinamento, e até sem físico para aguentar o peso da arma. Eles, magros, fracos, sub-nutridos, com uma AK-47 pesando sobre os ombros. Sempre desvio o caminho quando vejo um desses.

Além disso, ganham um salário ridículo (dizem, menos de 2.000mtn: 80USD), e vivem de extorquir as pessoas para o "refresco = 50mtn", "cervejinha = 100mtn", "ajudar a comunidade = 200 ou mais, quando estão em grupo".

É muito comum ver policiais militares agindo como polícia de trânsito, pois sabem que os motoristas pagam mais. Ontem mesmo me parou uma dessas caminhonetes com 8 ou 10 PM.

"Carta de Condução e livrete, por favor"

Nem é a responsabilidade deles, mas como estão todos com fome, sede, mal pagos, e com armamentos de guerra na mão, obedeço. Como não tinha o livrete, tive que "ajudar a comunidade". Se não tivesse nada errado, seria só um refresco (já percebi que o fato da minha carteira ser brasileira entra constantemente nessa categoria.

Enfim, Cuvilas foi mais uma vítima da falta de preparação da nossa polícia. História desgraçadamente familiar para ouvidos brasileiros. Espero que aqui as coisas se desenvolvam de forma diferente.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

enquanto olhamos a Pequim...

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... conflito com cara de guerra fria na Georgia. País com presidente pró-ocidente reiniciou a investida para abafar a tentativa de independência da regiao da Ossétia do Sul, na fronteira com a Rússia. E agora, naquele cantinho do globo.com vemos que a Rússia está invadindo o País (inteiro, nao só a Ossetia do Sul).


Analistas dizem que provavelmente o interesse da Rússia é usar o conflito local (Ossetia do Sul) para derrubar o presidente da Georgia, que é aliado dos EUA.


Será que esta é outra realidade que já mudou desde minhas aulas de história, quando a professora se referia â Guerra Fria como uma coisa do passado? Será o último dos conflitos para definir a fronteira leste-oeste? Ou o primeiro do retorno deste gigante adormecido?


A Rússia ficou muitos anos se recuperando, se fortalecendo, lambendo as feridas. Agora, com um poderio aumentado constantemente pelo petróleo.


Lembro que ano passado o campeao de xadrez Kasparov foi preso por participar em protestos em Moscou. Ele usou sua fama para chamar a atençao ao mundo para as tiranias de Putin. Agora, no entanto, já nao se ouve falar do homem.


Com tanta ridicularizaçao da Rússia por parte dos EUA (mídia, filmes), parece que deixamos de lado a preocupaçao com eles. E agora, com nossos olhos todos virados ao esporte, estao a caminho de invadir a capital da Georgia e possivelmente derrubar um presidente. E o mais perigoso é que os EUA consideram-no um importante aliado. Será que vao ajudar? E o Conselho de Segurança da ONU pouco pode fazer, além de pressionar. Afinal de contas a Rússia é membro com direito a veto!


Fontes:



terça-feira, 29 de julho de 2008

Apenas outro herói-libertador/tirano africano



Mugabe é só mais um daqueles heróis-libertadores/tiranos da África.
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Será que a primeira parte do título dá-lhe direito de ser a segunda? Nós, do lado de fora, sabemos que não. Os representantes da SADC (Southern-Africa Comission) parecem achar que sim.
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Voltando um pouco atrás para analisarmos a história desse homem... (excerto retirado do Wikipedia)
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Pertencente à etnia shona, filho de um fazendeiro local, foi educado numa escola de jesuítas. Foi professor primário na antiga Rodésia, Zâmbia e Gana entre os anos 1942-1949 e 1955-1960. Possui diplomas de inglês, História e Educação nas mais prestigiadas universidades africanas e obteve a licenciatura de economia (por correspondência) na universidade de Londres.
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Participou no movimento de Joshua Nkomo, a União Popular Africana do Zimbábue (ZAPU), em 1960 e três anos mais tarde funda a União Nacional Africana do Zimbábue - Frente Patriótica (ZANU-PF).

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É preso em 1964 devido às suas actividades políticas sendo libertado em 1974 altura em que parte para Moçambique onde lidera uma guerrilha que se opõe ao Governo de minoria branca de Ian Smith. Com o acordo de paz de Lancaster House, assinado em Londres em 1979 após meses de negociações, Mugabe voltou para a ex-Rodésia e foi calorosamente
recebido pela maioria negra.

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Torna-se primeiro-ministro da ex-Rodésia (já depois do fim do governo liderado por Ian Smith) em 1980 ao vencer eleições. Em Abril desse ano é declarada a independência do país que passou a ser designado por Zimbabwe ("Zimbábue").

Ele tornou-se, portanto, na época das “libertaçoes dos povos do jugo dos colonos brancos”, um dos maiores dessa leva de heróis-libertadores. Respeitado em toda a regiao.

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No início de seu governo, seu País gozou de grande crescimento economico e desenvolvimento social. Era admirado até pelos ingleses. A Rainha Elizabeth II chegou a dar-lhe um título de Knight Commander of the order of the Bath em 1994 (recentemente anulado).
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No entanto, após pouco tempo, ele tomou o caminho tragicamente comum a todos os países africanos. Começou a isolar-se no poder, centralizando todas as maiores decisoes do país em suas próprias maos, e eliminou os partidos de oposiçao.
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Logo veio a onda de grandes empréstimos do exterior, taxas de inflaçao estratosféricas, e um povo cada vez mais miserável.
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As estimativas mais conservadoras determinam uma inflaçao hoje de 100.000% ao ano. Um quilo de galinha custa, por exemplo, 15 milhoes de dólares zimbabueanos.
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Voltamos, entao, à realidade atual...
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O povo do Zimbábue finalmente deu um basta à tirania deste homem. O peso dos heroísmos dele finalmente foram vencidos pelo peso das desgraças que está provocando ao próprio povo que lutou para libertar.
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Nas eleiçoes deste ano o candidato da oposiçao, Tsvangirai, venceu o primeiro turno com 49% dos votos.
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A contagem, no entanto, demorou dois meses para sair. E nesse período, os chamados Green Bombers (milícia de jovens controlados pelo governo) fez a sua ronda de terror pelo país. Nas províncias onde a oposiçao venceu (todas, menos onde Mugabe nasceu), eles incendiaram casas, espancaram pessoas com cintos, correntes e chicotes, e em alguns casos queimaram-nas vivas.
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Após a divulgaçao dos resultados, em Abril, anunciaram que haveria um segundo turno, em Junho.


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A violencia nesse período foi tanta que o candidato da oposiçao teve que refugiar-se dentro da embaixada da Holanda, de onde, mais tarde, anunciaria a desistência de sua candidatura.
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Uma das atrocidades mais visíveis foi a agressao à mulher de um líder da oposiçao, que foi queimada viva dentro de sua casa por Green Bombers frustrados por nao terem conseguido encontrar o homem.
Além disso, a polícia saqueou diversas unidades do partido da oposiçao (MDC), prendeu Tsvangirai por cinco vezes em Junho, além de ter preso e assassinado diversos parlamentares eleitos, e outros representantes do partido.
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A pergunta que fica chega a ser infantil: pra quê fazer eleiçoes, entao? Melhor meter-se logo uma coroa de rei, e seguir em frente com a vida. Já conhecemos bem teatros eleitorais, onde regimes ditatoriais simulam uma votaçao justa para “inglês ver”. Este teatro, no entanto, foi feito com acesso aos bastidores: Ao mesmo tempo que víamos as supostas eleiçoes democráticas, acompanhavámos, atônitos, os horrores que eram praticados para garantir o resultado de interesse do Governo.
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Mugabe venceu as eleiçoes no segundo turno, em que concorreu sozinho e saiu com mais de 80% dos votos (o nome do opositor ainda constou das cédulas). A populaçao foi motivada a ficar em casa, para evitar mais mortes e violencia.


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Dias depois do resultado divulgado (este foi publicado em menos de 48 horas), Mugabe apareceu como presidente eleito na reuniao da Uniao Africana. Ali, onde os líderes africanos deveriam discutir o acesso à água em seus países, só se falou nele.
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Agora, quem deles vai intervir para salvar o povo do Zimbábue? Da nossa regiao aqui do Sul, somente o presidente do Zambia opôs-se abertamente ao homem, no entanto, o estado de saúde dele nao permitiu-o estar presente na reuniao.
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O da África do Sul, Thabo Mbeki, foi indicado no inicio do ano para representar os países do SADC na negociaçao com Mugabe. Ele, no entanto, nunca mencionou a violencia e muito menos denunciou-a.
Em Moçambique, acoberta-se os horrores desse tirano. Claro, como vimos antes, ele lutou para a libertaçao do povo moçambicano também. A manchete do jornal Notícias um dia após as eleiçoes foi “Eleiçoes correm tranquilamente no Zimbábue”. O texto embaixo explicava que “observadores diziam que as pessoas estavam a votar em massa”, ao mesmo tempo que víamos na internet fotos de locais de votaçao desertos.
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Isto num cenário em que a UE diz que os líderes africanos que têm que lidar com esse problema.
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O Bush aprovou sançoes duras. Inglaterra também. UE nao, preferiu poupar o povo de mais uma pancada. Afinal de contas, o sofrimento do povo nao parece mesmo afetar as decisoes desse tirano.
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Agora continua o tal teatro sem cortinas. Mugabe e Tsvangirai obedeceram um pedida da Uniao Africana para negociarem um “governo de poder compartilhado” e estao a tecer um documento neste momento, com um prazo de duas semanas para assiná-lo.
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Ora, muito bem. No entanto, como será dividir o trono com esse senhor, que ficou vinte anos lá, mandou matar milhares de pessoas porque desobedeceram suas ordens, que mata seu povo de fome, que rouba dos cofres do governo abertamente... Como ele poderá dividir qualquer coisa com seu maior inimigo?
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Alguém há de se matar. Nao existe poder compartilhado neste caso. A Alemanha que é a Alemanha mal conseguiu fazer isso. Imaginem o Mugabe!
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Nesse teatro, é o povo quem sofre. E ninguém pode fazer nada por ele. Estao encarcerados nesse teatro de horrores. Trancados em casa à espera da próxima onda de violencia. Tremendo de medo ao ouvir barulho de carro à noite, rezando para nao ser mais uma vez o exército de bêbados, cruéis do Mugabe.


Links:
http://www.madamandeve.co.za/ (cartoons. vá em "archive" e procure por "mugabe")

Fontes:
Livro "The State of Africa" de Martin Meredith
Wikipedia.org
Sites listados acima
Jornal Noticias (Moçambique)

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sábado, 26 de julho de 2008

Inclassificável

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“É bem provável que as perspectivas de paz no mundo contemporâneo dependam do reconhecimento da pluralidade das nossas afiliações e do uso da nossa reflexão, assumindo-nos enquanto vulgares habitantes de um vasto mundo, e não como reclusos encarcerados em pequenos compartimentos.” Amartya Sen, Identidade e Violencia, 2007.
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Vem da certeza de uma menina, mulher, meio-prostituta moçambicana a minha inquietude maior em relação a este tema. Moradora dos subúrbios da cidade metropolitana da Matola, vizinha de Maputo, ela não teve acesso a estudos, e tem como fonte de renda uma filha de cabelos claros, fruto do relacionamento com um francês. De cor branca, mais branca que eu, lábios grossos, nariz arredondado mas não achatado, olhos puxados e negros com lentes azuis, cabelos lisos, fruto do milagre das extensões capilares, sem bunda, magra, afirma:
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- Sou negra!
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Na hora, ri. Negra? Fiz o que imagino que todos devem ter feito em situação similar, inspecioná-la em detalhe, tentando classificar cada traço com uma origem. É sério? Você é negra?
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- Sim (sem graça, constrangida pela minha reação pouco delicada)
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É negra sim, e daí? Cada um de nós deve ter a liberdade de se classificar da forma que julgar mais adequada. Ao invés disso, no entanto, o que predomina ainda hoje, é uma classificação universalmente aceita, que leva em consideração a origem, a cor, a religião, o gênero.
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Eu sou fruto de uma mistura total. Já tentei descobrir todas minhas afiliações e já me cansei. Árabe, Europeu, Negro, Índio, Judeu, e Brasileiro. Essa última categoria serve para descrever os bisavós que já habitavam na terrinha antes de alguém ter interesse em registrar de onde vêm.
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Sou homem, sou mulher, sou bicho, sou católico, ateu, branco, árabe, judeu, empregado, chefe. Sou feliz, sou depressivo, sou brasileiro, italiano, libanês, e de onde mais quiser. Se eu me sentir assim... (Tio Ache, seguimos em conexão nos pensamentos)
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São os outros que exigem uma identidade única e classificável. As pessoas nos conhecem por tempo determinado, e precisam de um rótulo para facilitar nossa leitura e classificação. Aquele é o Luis, o brasileiro. Aquele é Paulo, o negro. Aquele lá é Márcio, o muçulmano, e o outro é o Camilo, o crente.
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Se fosse só um lembrete pra ajudar a gravar os nomes e caras, tudo bem. No entanto, sabemos que a divisão em classes pode ser bombástica. Mais uma vez uso o exemplo de Ruanda. Uma pessoa que historicamente é simplesmente de Kigali, agora passa a ser um Tutsi de Kigali. E aquele outro, com o nariz achatado e mais escurinho é um Hutu de Kigali. Isso definido por olhos alheios àquela realidade. Como numa divisão de time de futebol, separam um grupo para cada lado. Depois de algum tempo vê-se o resultado. Carnificina.
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O rótulo, que foi útil para facilitar a classificação, serve agora como um nicho de uma estante, onde serão guardados todos os atributos relacionados àquele grupo. Vemos três, quatro, cinco vezes no jornal a foto de um negro cometendo um crime, pois metemos na estante do negro: criminoso. Vemos um travesti na rua assediando pessoas e causando confusão: homossexuais são escandalosos e causam confusão. Vemos dez, vinte, trinta ataques terroristas executados por grupos radicais islâmicos: muçulmanos são terroristas.
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Nossa mente simplista (não canso de repetir) insiste em querer achatar, simplificar e encaixotar as coisas. Parece que somos eternos preguiçosos mentais. Dá muito trabalho parar e conhecer alguém, é muito mais fácil metê-lo num baú e seguir em frente com a minha vida, relacionando-me com meus similares.
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Ora, eu não sou o, sou um. Deixe-me na minha inclassificaçao*. Quero mesmo ser um vulgar habitante desta Terra. Os franceses vêem-me como italiano, os italianos, como brasileiro, os brasileiros como uma ovelha desgarrada, os moçambicanos como chefe representante do primeiro mundo e tudo que é bem feito. Os católicos do Brasil vêem-me como um descrente, os europeus como um conservador catolicista, e os moçambicanos nunca me perguntaram.
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A única coisa que vejo em comum em todos é o afã de me categorizar, me rotular, me reduzir à ilusão da singularidade (teoria do escritor citado no início).
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Eu (voltando a mim), desde criança sofro com isso. Uma vez, aos poucos anos de idade, ousei gritar ao meu vizinho “playboy!”, ao que ele respondeu “sim, sim. Sou playboy mesmo. Pelo menos sei o que sou. E você, o que que é?”. Entrei em casa, humilhado. Na escola, por muitos anos eu era considerado gay. Por outros, nerd. Logo, maconheiro, depois playboy, depois CDF, seguido de mulherengo, e logo já parei de acompanhar devido à distância. E sempre com uma pressão interna – e externa – por escolher e ser reconhecido por um desses rótulos, ou outros vindouros.
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Extrapolando mais um passo, a pluralidade da nossa identidade não é só caminho para nossa própria liberdade, mas sim uma saída para a paz entre os povos. Por que, em vez de buscarmos as diferenças entre nós, não buscamos as semelhanças?
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Vejo, por exemplo, na gravidez da mulher uma grande esperança. Quem não olha para uma grávida com olhos brilhantes e um sorriso na cara? Ou mesmo uma mulher com um bebê nos braços. É o ponto comum entre todos nós. Somos todos bicho. Por muito tempo tivemos várias grávidas na Total. Eu tinha uma alegria diária em cumprimentá-las, elas também, cheias de luz.
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Cada uma delas representa a esperança. Sim, acredito também nisso. Quando voltamos à casa, nossa realidade é via de regra similar. Temos que cuidar da nossa família, pagar as contas, alimentar o cachorro, mijar, cagar, comer... Somos assim vulgares, comuns.
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A ilusão da identidade vem também, em minha opinião, da nossa arrogância em almejar ser algo maior, especial. Todos queremos ser reconhecidos como únicos, queremos o conforto de pertencer a um grupo. Nós, Hamdan, somos bonitos, os outros são feios. Nós, homens, somos grandes políticos e estrategistas, as mulheres nem dirigir sabem. Comentários geralmente seguidos de risadas, provavelmente resultado do contentamento em pertencer.
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Mesmo nas relações amorosas isso fica evidente. Por mais que o que cada ser humano pode oferecer seja basicamente idêntico, nós queremos sempre ser reconhecidos pelo nosso parceiro como alguém especial. Isso é uma batalha constante. No trabalho, sentimos que somos únicos. Muitas vezes pensamos honestamente que não podemos sair de férias, senão “quem vai fazer o meu trabalho por mim?”. Ora, vamos lá! Submetamo-nos à simplicidade do nosso ser! Este sim é o caminho da grandeza.
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Eu, enquanto isso, sigo no conforto da inclassificação. Sou tudo, sou todos. Sim, sou todos. Sou várias pessoas. Mesmo as palavras que passam por mim vêm de todo lado. Da minha mãe, do meu pai, das minhas leituras, do livro que estou lendo, dos jornais que leio. Somos apenas um prisma trincado, repassando parte daquilo que é direcionado a nós.
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obs:
1. a palavra inclassificação não existe no dicionário. deveria.
2. outras palavras também possivelmente nao existem
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Por: Luís Paulo Camisasca. Inverno 2008 em Maputo,
semi-nu no quarto, cheio de frio e
vinho tinto Boland Kelder Pinotage
safra 2005 na cabeça.
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Pessoas de quem roubei idéias mais directamente: Amartya Sen, Oscar Wilde, Tio Ache, e sem querer da Marina Lima (da cançao "inclassificável", mencionada pelo meu tio no blog Disarmed)

terça-feira, 15 de julho de 2008

Eu, Un Don Quijote

Por Sérgio Cabral

Lutarei contra mil moinhos de ventos,
cairei de meu Rocinante muitas e muitas vezes
e outras muitas voltarei a montar.
E olhem para mim, magro, feio e pouco inteligente,
me deixei levar pela paixão.
E nem sei a quë. Ou sei.
Perco a montaria, mas não perco a honra, volto a montar.
Continuarei defendendo desprovidos,
continuarei com minha tolice de acreditar no impossível,
irei a lugares onde apenas os apaixonados vão.
Parece que vou atrás do inatingível, mas vou.
Serei eu um louco?
Encontrei na desesperança a minha fé,
lutando por pouco e, talvez, por muito,
ainda não sei, mas continuarei lutando.
A beleza da vida está em nunca desacreditar,
está na luta eterna, em atingir o inacessível,
ou em acreiditar que se atingirá.
Trago em meu coração as tristezas das despedidas,
e continuo procurando o impossível,
E depois de tudo encontrarei, em meio às chamas, o amor;
E ainda em meio às chamas poderei amar.
No fim de cada jornada desço de meu rocim
e peço perdão para aqueles que não têm piedade.
Eu? Apenas um Don Quijote.

Sérgio Cabral.

Obs: Venho trocando idéia com o Sérgio, irmão da Goreti, por e-mail há umas semanas. Ele está em missão pela ONG Médicos sem Fronteiras no Camboja. A vontade é de publicar todas as histórias dele, mas talvez o verso seja uma expressão mais resumida...

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Pontos de Vista e Contexto - Só um pensamento...

Sábado fomos a uma festa num bairro chique aqui em Maputo. Meus amigos e eu ficamos do lado de fora, dançando e bebendo qualquer coisa. Mesmo no inverno moçambicano, o pessoal aguentou a brisa fria para curtir o céu aberto.

Um deles, inglês que mora na Zambia (aqui perto), vira para mim e fala:
- It's so nice to feel the cold air.
- What?
- Yeah! It's fantastic! You can actually breath deeper. It's refreshing.... Gives you life! We don't get that in Zambia. There it's just warm all year-long.

Quer dizer... imagine o ponto de vista dos moçambicanos com frio, e os que nem saíram de casa pra ficar aconchegados debaixo da coberta. E agora imagine o que ele estaria dizendo num outro contexto, se estivesse no inverno gelado, cinzento e molhado de Londres... essas coisas fazem-me refletir sobre minha situaçao meio nômade. A mesma situaçao, mesmo clima, com opinioes, sensaçoes completamente diferentes. Desses pequenos exemplos fica mais fácil entender como podem haver tantos conflitos no mundo. E também o motivo pelo qual sao inevitáveis. Nunca duas pessoas poderao ver o mesmo objeto da mesma maneira...

as árvores peladas de paris







as árvores peladas de paris

despidas de sua vaidade
escondem mas entre-mostram

sob o olhar de milhares nao envergonham-se

deixam transparecer o que há por trás e adornam com sua trama negra

com a crueza da monocromia seus galhos entrelaçam-se rumo ao céu
como raízes que nasceram para o lado de cá

uma torre

um prédio

uma ópera

um museu

emoldurados com a simplicidade da natureza adormecida

os arquitetos cinzentos de Paris ganham uma maozinha da Mae que descansa mas
nao deixa a magia desta moça morrer

Abril, 2006. Paris

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Identidade Nacional

Nós, brasileiros que tentamos uma carreira de alguma forma séria fora do Brasil, temos que conviver e lutar contra os esteorótipos que a mençao da palabra Brasil traz à mente. Posso contar nos dedos as pessoas que conseguem segurar o sorriso malicioso ao ouvir meu local de nascença e criaçao. A imagem que vem à cebeça, imagino, envolverá uma mulata de ancas largas dançando samba, rodeada por homens morenos, musculosos, sem camisa, com uma cerveja na mao e um baseado na outra. Ah! E confeti e serpentina chovendo como numa final de copa do mundo.

Isso nao é novidade para ninguém. E nem necessariamente é algo negativo. Essa aura brasileira já me garantiu lugares em festas, e um cartao de entrada a grupos de gente que mais tarde tornou-se minha amiga após conhecer minhas reais qualidades e defeitos.

Também, por outro lado, já ouvi diversas críticas duríssimas e julgamentos sumários por minha traiçao à pátria... "Só pra Contrariar" no fundo, todos europeus-bunda-quadrada batendo palma, animadíssimos, viram-se pra mim com olhos arregalados, cheios de expectativa: "Vai láá brasileiro!! Enseñanos como se baila la samba!" "Como?? Você nao sabe sambar??". Essa cobrança estende-se também ao bom humor. O dia que o sorriso nao sai, acordas de mau com a vida, ou simplesmente estás a fim de mandar alguém para casa do chapéu, logo lançam olhares e comentários "god! what kind of brazilian are you?", como se, dentro do teatro global, fosse do brasileiro a funçao de animar, providenciar prazer e gozo aos outros, estes ocupados com as questoes sérias da vida.

Brasil se tornou, de fato, uma marca. Marca esta que cabe muito bem em sandálias para a praia, em biquinis, refrescos, cervejas e jogadores de futebol. Isso, como um primeiro passo é excelente, especialmente para nós, que até pouco tempo nem tínhamos uma marca internacional. Agora estamo começando a construir um outro degrau, com nossos avioes, médicos, comunicadores e engenheiros, em que as pessoas começam a tomar um choque em relaçao ao primeiro. "Oh, yeah! City of God is brazilian... (cara de estranhamento) is it a national production?"

Yes it is. Nós, na nossa luta por definiçao de uma identidade, uma cara nacional, temos que caminhar rumo a esse segundo degrau, sim. Do profissionalismo, estudo, ciência, razao... Tudo isso, mas sem esquecer que é o primeiro degrau que dá-nos o diferencial. O balanço entre nossa capacidade intelectual e o jogo de cintura para resolver problemas, o bom humor nas relaçoes interpessoais e a criatividade é a mistura que pode nos tornar peça fundamental em qualquer empresa, projeto, governo ou ONG no mundo todo.

domingo, 8 de junho de 2008

A Morte do Credelevê

Gente, já pensaram que, com as novas regras ortográficas do português o crê-dê-lê-vê simplesmente morreu? Quantos neurônios já queimamos, com caneta na mao, com o "v" e o "e" já no papel, repetindo na nossa cabeça essa boa dica, para completar com sucesso o "êm", e concluir com um sorrisinho malandro de canto de boca agradecendo a pessoa que te passou esse infalível truque.
Agora já nao. Acabou-se!
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E o péla-saco? Virou um pelassaco? O guarda-roupa é um guardarroupa? E se eu for ao Brasil já nao pegarei um vôo, mas sim um voo! Que língua é esta, meu deus? E o pára-raios? Já virou para-raios ou pararraios?! Agora sim, mae, aquela pergunta que fiz aos 6 anos de idade faz sentido! É para os raios ou contra os raios? Responda-me bem CPLP. Hein?
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Daqui a pouco Tio Ache já vai começar a fazer outdoors pela cidade escrevendo que este ou aquele hipermercado é superbarato*! O jornal vai dar manchete que o candidato francês à presidência é um antissemita e o americano tem um passado heroico!
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A minha frustraçao vem por conta das mudanças desde que saímos da escolinha - que é nossa base cultural, naturalmente. Primeiro é o sistema solar, que deixa de ter nove planetas para ter somente 8. E as nossas piadinhas de criança, como ficam? "Vou te mandar lá pra Plutao", "aah! Fala que eu to em Plutao!!". Agora o sinonimo de longe e isolado qual vai ser? Aquele oitavo planeta cujo nome nem me lembro? Ou nos contentaremos com a Sibéria?
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Claro que fico contente com o fato (fato! Nao fa"c"to, Sr. Tuga) de as novas regras trazerem facilidades para a comunicaçao interpessoal lusobrasileira (¿¿¿Cadê o hífen???) e com a reduçao dos problemas que terei com a escrita aqui em Moçambique, relaxando meu policiamento quanto às "acçoes da directoria nos projectos de 2008".
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No entanto, ainda me incomoda muito ter um grupo de pessoas dizendo que o que a MINHA MAE me ensinou de repente virou balela, passado, museu, português arcaico! Mae, continuamos juntos. Vou repetir o seu crê-dê-lê-vê até nossos últimos dias. Essa e outras tantas regras passadas a base de repetiçoes infinitas e beliscoes contundentes formam o elo que nos manterá sempre unidos. Deixa a CPLP pra lá!
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Beijos a todos.
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PS: O til continua firme e forte na Lingua Portuguesa, só nao existe no meu teclado, este, espanhol...
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*Argumento derrubado pelo próprio Tio Ache, que me informa que hipermercado já se escreve junto! Ops!

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Re: Ataques Xenófobos na África do Sul


Pois é, Tio. Muito feio mesmo o que vem acontecendo por aqui. Mais de 30.000 já voltaram, 60 deles em caixões. Outros milhares ficaram por lá, abrigados em igrejas e acampamentos improvisados, e a depender de doações de ONGs e cidadãos sul-africanos que se envergonham da barbárie de seus compatriotas.

Quando cheguei a Moçambique tinha a esperança de uma África Austral moderna, em crescimento e em caminhos de paz. Tendo o Quenia como principal promessa da região, Angola como a milionária do petróleo, a África do Sul como um modelo de "black empowerment" e Moçambique como um exemplo de Paz duradoura, todos começavam a olhar para cá com outros olhos.

No entanto, uma a uma as esperanças foram caindo. Quênia revelou o lado mais cruel dos africanos, com a limpeza étnica que caracterizou os mais sangrentos conflitos no continente, como Uganda, Ruanda, Congo, etc. Pessoas com catanas, facas e foices fazendo barragens nas estradas para eliminar qualquer pessoa de determinada etnia. Logo veio o Zimbabwe que, como todos já esperavam, caiu na desgraça após as últimas eleições. Mugabe não divulgou os resultados - largamente favoráveis à oposição - e logo começou a mandar matar e/ou maltratar os moradores de regiões que votaram contra ele. Chicotadas, correntadas e facadas em pessoas que cooperaram para o movimento - recebemos fotos de um cidadão que simplesmente deu carona para um grupo de votantes e por isso teve as costas esfoladas.

E agora a pancada veio de onde menos se esperava. Fotos nos jornais de multidões abanando catanas ao ar e expulsando a ferro e fogo os Moçambicanos, quenianos, angolanos, nigerianos, que eles culpam pelos altos indices de violência no país. Ora, que ironia, não é? Espancar até a morte pessoas que julgam responsáveis por atos de violência! É o auge da justiça com as próprias mãos. E quem é o juiz disso tudo? Será quem grita primeiro "É ele o safado! O Changana que anda roubando e estuprando".

Por falar em justiça com as próprias mãos. Outro dia, um domingo, fui acordado por gritos desesperados de "PEGA LADRÃO!!", seguidos de uma pancada seca que acredito ter derrubado o meliante. No que ele levanta-se para voltar a correr, mais uma série de porradas com gritos esgoelados de dor e súplica por misericórdia. E quem é o juíz disso tudo? Quem gritou primeiro "Pega Ladrão!". E quem vai dar a misericórdia? Ninguém, pois com a massa não se negocia. O destino desse homem já foi traçado quando começou a correr com a carteira na mão.

Nessas horas penso muito no que diz minha mãe. "É falta de Deus". Tem que ser mesmo. Nós não podemos tomar em nossas mãos o poder do juízo sobre a vida de outro ser humano. Decidir que o erro que o próximo cometeu é grave o suficiente para causar seu extermínio. E ainda mais grave quando levamos esse exemplo ao caso da Africa do Sul, onde grupos de pessoas julgaramm e condenaram povos inteiros.

Enfim, temos que tomar isso como ponto de reflexão. Afinal de contas, quem nunca acusou um certo grupo de pessoas pela criminalidade? Sejam negros, romenos, paquistaneses, ciganos, mexicanos, polacos... Sempre ouvimos e fazemos comentários com aparência de análises estatísticas e que começam essa bola de neve que acaba em genocídio. "90% dos presos são estrangeiros ou negros!", "desde a chegada desses romenos a criminalidade aumentou muito", ou o clássico "tinha que ser...".

Como não podemos chegar até a África do Sul para parar os ataques, proponho que todos nós façamos um esforço no sentido de exterminar esses pensamentos xenófobos de dentro de nós e assim contribuir efetivamente para um futuro mais cheio de paz e união entre os povos.

"If we want to change our world, we first change our thoughts, our expectations and our beliefs" (Gandhi)

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Personagens da Minha Vida Moçambicana - Parte II

Zé e Macuacua

A pedido do grande amigo e ex-vizinho James Augusto da Silva, conto sobre os dois guardas-porteiros-faz-tudo Zé e Macuacua.

Acabo de chegar da rua. Passei a tarde fazendo “trabalhos de sábado” que, na cultura da minha casa quer dizer comprar coisas para melhorar a casa e aumentar a cultura cinematográfica e musical. Quando a limusine libanesa desponta no início do meu quarteirão já nota-se uma agitação na porta do prédio ao lado do banco. Alguém corre animado e se livra dos dois cones que reservam o lugar do “patrão”.

- Boa noite, Zé! Tá bom?

- Boa noite, patrão! Simsim. To bem sim, não sei do seu lado.

Cara de menino, sorriso ingênuo e uma vontade genuína de ajudar as pessoas. A paixão com que atende cada necessidade dos seis “patrões” da Mártires da Machava 133 é comovente. Nao passo um dia sem olhar para ele com olhos brilhantes e sobrancelhas arqueadas como quem admira um ato profundo feito de coração. Nem que seja o ato mais simples, vê-se que o homem tem uma motivação inspiradora em fazer com que cada um de nossos dia seja mais leve. Tira o peso da porta, o peso das compras, o peso do mau-humor matinal com um largo sorriso olhando nos olhos...

- Bom dia, patrão!

- Porra, Zé! Logo hoje que tava disposto a ter uma manha miserável!!

Exagerei um pouco. Mas deu para ter uma idéia do “efeito Zé”.

Outro dia teve um filho, o gajo. James, meu ex-vizinho e grande brada, já vinha me perguntando há meses do Zezinho. Ao telefone nem falávamos mais de nós. “Luis, e o filho do Zé , nasceu?” Patrão James tava ansioso. Foi meu vizinho-de-portas-abertas e grande brada (brother) por vários meses. Tempo suficiente para se apaixonar pelo Zé. James é brasileiro e um pouco inglês, tem dois filhos lindos e loiros e a mulher, Kate, além de uma paixão pela vida que nunca havia visto e uma sabedoria que não condiz com seu olhar juvenil.

Em fevereiro nasceu o James. Sim. Não quero confundir tua cabeça. O filho do Zé levou o nome do patrão...

- (eu) Zé!!! Não acredito! O miúdo chama Patrão James??

- Heheheh! Chama-se James simsim patrão.

- Caramba!! Parabéns, Zé!! Que ótimo, rapaz! Vou ligar pro James. (isto um dia antes do aniversário do homem)

Tadinho. O Zé não entendeu nada. Devia achar que o James tava na Matola, enquanto tava lá em Londres, curtindo um friozinho outonal. Ficou emocionado que ouvi sua voz tremular no telefone. “É menino, Patrao James!! ... É James, James, patrão!”

Ao final de alguns minutos de conversa empolgada pego o telefone, ainda quente, e ouço um James ainda bufando com tanta emoção. Caralho, Luis!! Que bom, cara! Tô feliz pra caralho, cara!!

Pô! Só o Zé pra emocionar a milhares de milhas com tanta vivacidade. Antes de eu contar o causo ninguém acreditava. Tudo bem...

Voltando pra informação prática, ele trabalha aqui embaixo como porteiro, fazendo turnos de doze horas com o Sr. Macuacua, que provavelmente é o chefe e guia espiritual entre os guardas – tanto do prédio quanto do Banco ao lado de casa, que faz com que a entrada vire um entulho de seguranças e policiais que gastam 80% do tempo em análises anais. Enfim, o Sr. Macuacua tem um sorriso-patrao e uma voz-patrao. Por um “bom dia patrão” deve gastar tanta energia que tem que descansar por uma hora, encostado em sua árvore.

A profissão secundária do homem – que é praticada concomitantemente ao ofício de segurança do prédio – é a de sapateiro. Senta a bunda num pedaço de concreto ao pé da Acacinha (Acácia em frente de casa, batizada pelo Tio Rô-ger) e recosta em seu tronco para o devido repouso bi-minutal. A posição estratégica para defesa do patrimônio dita que deve sempre estar de frente para a porta do prédio e de costas para a rua, deixando três metros de calçada no meio para melhor visualização, classificação e categorização das bundas locais.

Dentro das opções locais para enganadores o Sr. Macuacua costuma estar dentro de “to-te-fazendo-de-trouxa-mas-num-liga-não-porque-a-cada-Metical-que-te-arranco-você-ajuda-o-povo-africano-que-sofre/não-me-leve-a-policia-porque-vão-me-bater-e-quebrar-meus-dentes-que-formam-meu-sorriso-falso-que-é-meu-sustento-no-final-das-contas.” Primo primeiro da Proprietária dos Infernos.

Um desses dias infelizes, esqueci a janela do carro aberta. Tipo, não há grandes riscos na região, devido ao elevado número de guardas por metro quadrado, mas é bom saber, né? Macuacua me avisa às onze horas da manha do outro dia, com um sorriso irônico na cara

- “bom dia patrão! O patrão esqueceu o vidro do carro aberto, né patrão?”

- que?? Não acredito!!

- Não não, patrão! Não há de se preocupar. Tá aqui pertinho da gente.

- Tá bom, Macuacua! Mas podia falar de primeira, né?

- Ah, não há de se preocupar não, patrão! Nós até revezamos pra ver quem dormia dentro... não há de roubar nada não.

Putz! Fala sério... ao abrir a porta do carro, tinha uma nuvem de mosquitos curtindo o extrato de sumo catinguento resultante das horas ao sol combinadas de uma meia dúzia de homens com acesso limitado a fontes de água corrente. Andei três horas com o vidro aberto mas a mosquitada só foi embora ao som espirrado do Baigon.

Logo ao chegar no apartamento onde moro atualmente...

(péééééé)

- Patrao, tenho que falar com o patrão. Quero discutir quanto o patrão vai nos pagar.

- Beleza. Entra, fica a vontade.

- Entao? Quanto os vizinhos costumam te pagar?

- Aah! Varia né, patrão?! (sorriso)

- Varia de quanto pra quanto?

- Aaaaah... tem o patrão Machalumaba que paga mil pra cada, né? Tem também o patrão James que paga quinhentos... Mas se o patrão tem carro, e tem que guardar vaga, custa mais caro...

- Ok... vou falar com eles e volto a dizer algo.

Po! Eles não tavam pagando nem duzentos para cada um! Tipo... se eu fechasse negócio com ele de pagar mil, o que ele diria no outro dia, quando eu descobrisse que era mentira? Imagino que algo na linha “aah, patrão! O senhor sabe, né?... Nem sempre a gente pode dizer a verdade, né...!”

domingo, 23 de março de 2008

New Home

Escreveria sobre mil outras coisas prazerosas, mas o personagem da minha ultima história pré-revolta predomina sobre todas as outras. A distinta senhora acabou de me passar um aviso de encerramento do contrato.

Tudo foi uma continuação dos abusos que vêm acontecendo desde que para cá me mudei. Umas duas semanas depois de escrever a já famosa história, cortei o gato com uma faca de cozinha num acesso de raiva. No outro dia ela naturalmente me perseguiu, indignada, para saber o que se passava. Como assim, o inquilino cortou meu gato??

Bom, ela me explicou meio que calmamente que não é assim que se faz as coisas. As pessoas devem conversar antes de tomar atitudes, e dar um prazo para a solução dos problemas.

-Mas Dona Rosana, desde o principio a Sra. Disse que não vai precisar da minha energia, instalando o tal Credelec (energia pré-paga).

- Siim (expressão típica moçambicana), mas eles demoram muito, sabe? O Luis Paulo tem que entender que eles já vieram aqui uma vez, analisaram a área e garantiram que está apta para o programa. Agora ficaram de vir outra vez para instalar.

- Mas já faz quase dois meses...

- Eles são muito demorados. Mas quando vierem peço pra olharem o seu também.

- Dona Rosana, vou fazer uma gambiarra e religar isso. Daqui a uma semana volto a cortar. Não vou agüentar este tipo de situação na minha casa. Não pelo valor, que a sra. Nem me pagou, mas por ser uma situação ridícula!!

- Tá bom. Vou ver o que posso fazer... passe bem (dá a mao mole, achando ruim)

Depois disso dei outros tantos ultimatos, sendo o ultimo no aniversário de três meses do ocorrido. No pagamento do aluguel lembrei-lhe da ameaça. Nada fez. Na Sexta passada a Minora sem querer esbarrou na gambiarra, que se desligou. Caput! Não voltei a ligar.

Hoje, uma semana após o bem-logrado acidente, recebo a carta através das mãos do fiel e ansioso Zé (porteiro), que ao ver meu carro apontar no começo da rua já se pôs de pé, pulando de um pé ao outro com os papéis na mao.

- Boa noite, Patrao!

- Boa noite, Zé! Tudo bom?

- Tuudo, patrão. Só que a Dona Rosana deixou isso aqui, ó!

- Falou algo ou só escreveu?

- Só escreveu só.

- Tá bom, Zè. Brigado. Boa noite.

Inserir scan da pagina!

Pronto. Fui libertado do prazer doloroso de ser inquilino da Proprietária dos Infernos. Daqui a 90 dias, isso sim. Afinal de contas, assim é que se faz: avise com antecedência. Lição de moral da filha do Cão... só me faltava essa!

ADENDA (10 de Abril)

--> Negociamos com a Senhora. Vou continuar na casa! Claro que tive que ceder em relação à energia... e à água, que descobri que também vaza para o escritório dela. Mas bom... c'est la vie. Agora pelo menos as coisas estão claras. É gato mesmo, e ela não pagará.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

...E o pacato povo falou... e gritou, queimou, pilhou, quebrou...

Ontem passei meu primeiro dia de medo em Moçambique. Moro há 8 meses em Maputo, e até então não havia visto o lado "negro" da cidade. Isto virou um verdadeiro faroeste. Uma revolta de milhares de populares devido ao aumento de 50% na tarifa do transporte semi-coletivo (Aqui, chapas. No brasil, perueiros). Bloqueios nas estradas, carros incendiados, e confronto com a polícia, que orgulha-se em haver ferido 100, matar alguns e manter a confusão longe da área nobre.

Agora já acabou a tensão, eles voltaram ao preço anterior (previsivel) depois de um nervosismo generalizado na cidade. Minha região sempre fica protegida (perto de onde mora o presidente), mas eles conseguiram fechar a principal avenida da cidade (Eduardo Mondlane) a pedradas, e também vandalizar diversos estabelecimentos na periferia.




O motivo da revolta foi o já anunciado aumento do preço dos chamados Chapas. Um aumento repentino de 50% num preço congelado desde 2005. A justificativa principal foi a recente sequencia de aumento nos combustíveis.

Para entender melhor o impacto desse aumento na vida do trabalhador médio, dou alguns números. Uma empregada doméstica ganha $40USD. Um segurança (equivalente aos nossos porteiros) ganha entre $40 e $70. Considere que o normal é que não se pague vale-transportes.

Cada passagem custava antes do aumento $0,20. Para uma doméstica que pega dois chapas para chegar ao trabalho, $16 são gastos mensalmente em transporte (40% do orçamento). Após o aumento a passagem custaria $0.30. $24 mensais. 60% do orçamento.

Naturalmente o impacto é menor para as pessoas de maior renda. Mas se considerarmos que o salário minimo aqui é de $65, vemos que a quantidade de pessoas seriamente impactadas pelo reajuste é bastante grande.

Nesse contexto entramos no dia do prometido aumento. 05 de Fevereiro - a supertuesday para os americanos, e a chaostuesday para nós. Desde as 05:30h da manhã os passageiros já começaram a se recusar a tomar os chapas. As multidões se juntam nos pontos de chapa, os animos esquentam, e começam a caminhar em multidões rumo à cidade, para demonstrar seu repúdio ao aumento. Os que insistiam em esperar o chapa eram coagidos a desistir, às vezes à força.

Rua a rua foram se aproximando ao centro, e deixando barreiras em todas as saídas de Maputo. Incendiaram chapas, destruiram, saquearam e tentaram botar fogo em postos de gasolina. Ao saber do ataque a um de nossos postos, corri para ver do que se tratava. Quando cheguei vi um cenário de guerra. A rua vazia, conteineres no caminho... a principio segui em frente na Av. Acordos de Luzaka, uma das primeiras a ser atingida, sem saber ainda do que se tratava. Até que vi um camião de guerra, camuflado, cheio de militares armados e com máscaras de gás no topo. Passam e eu ainda estupefato sigo em frente. Vejo que todos os carros retornam e faço o mesmo. Dá tempo ainda de ver um carro com civis armados de metralhadoras seguindo em direção ao lugar de onde sai uma fumaça preta...
Na volta à zona da Baixa, Museu, as mais calmas da cidade, vi que a situação já estava espalhada. Estavam naquele momento tomando conta da principal avenida da cidade - Eduardo Mondlane. Multidões invadindo a rua nos aconselham a retornar, ameaçando apedrejar e incendiar os carros. De longe ve-se mais conteineres e sente-se o nervosismo da multidão.


Corro então para resgatar meu amigo Edson Mabote, que tinha sofrido uma tentativa de ataque num ponto de chapa e queria uma carona para casa. Vamos por ruas secundarias tentando chegar a Malhazine (periferia). Tarefa que mostra-se impossível. Acompanhamos de perto as multidões que se deslocavam rumo a mais um de nossos postos. As pessoas no sentido contrário apressavam-nos a retornar - novamente. Decido deixar o Edson na minha casa, já que havia trabalhado toda a noite.
Na volta à Total, nervoso, suado e afobado, dou o aviso aos colegas. Poucos acreditam na dimensão da coisa. No entanto, rapidamente chegam as notícias de vandalismo naquele posto, e ouvimos os disparos perto do escritório da Total. Uma multidão que se aproximava. Nós, com medo de que descobrissem e atacassem nossa sede, fugimos para o hotel ao lado. Logo os diretores se reunem e decidem fechar tanto o escritório quanto nossos postos.

O resto da tarde foi tranquila para quem estava no centro. Quem teve que ir para casa na periferia nos relata hoje a tensão, o medo, a destruição... O resultado final foram vários veículos queimados, outros tantos apedrejados, toneladas de lixo jogado na rua, dezenas de estabelecimentos comerciais foram pilhados e vandalisados... E isso lhes valeu a volta do preço da passagem para 5Mtn.

Hoje a cidade acordou de ressaca. Os chapas continuam em greve (a maioria), e algumas pessoas protestam contra a greve dos mesmos. Outros ainda aproveitam o sucesso da revolta para reivindicar uma volta atrás no aumento do preço do pãozinho e da gasolina...

Para entender o conflito é importante ver o pano de fundo. O povo vem aguentando absurdos deste Governo desde Abril de 2007, com a explosão do Paiol de Malhazine. Centenas de mortos e feridos, milhares de desalojados, muitas promessas do presidente, e pouca ação. Alguns ainda vivem em tendas improvisadas, enquanto o dinheiro de assistencia social é comido pelos burocratas e corruptos.

Outro efeito que vem estrangulando as populações mais pobres é o crescimento da inflação, sem o aumento de salários para a base da população. O crescimento economico, de 7 - 8%, beneficia os mais ricos, que absorvem bem os aumentos. Na camada mais baixa, no entanto, não há sinais evidentes de desenvolvimento. Com o salário congelado (programado para ser revisto ainda este mês), veêm os aumentos graduais comerem seu orçamento. Gasolina, pão, chapa, casa...

O povo moçambicano, já conhecido por sua passividade, explodiu. Vê-se sem opções além de protestar para que algo mude. Já não conseguem se sacrificar. Não há de onde tirar. Alguem tem que ceder, e desta vez foi o Governo.
Aqui, uma descrição mais completa e cronológica dos acontecimentos:
O jornal O País tem em sua versão online uma leitura mais fria e distante:
Tem uma carta do Manuel de Araújo que está rodando o país por e-mail e SMS. Chama-se "Carta aberta ao Presidente da Republica a proposito da revolta popular em Maputo"

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Personagens da Minha Vida Moçambicana - Parte 1

Proprietária dos Infernos

Dona Rosana é uma senhora de sessenta e tantos. Moçambicana, mae de vários, um marido, dona de diversos imóveis alugados, meio matrona, deve pesar seus 70 quilos. Aproveitou-se da época pós-independencia quando um terreno em Maputo custava algumas centenas de dinheiros para preparar bem sua aposentadoria. Cada imóvel é um negócio, e tem que ser rentável. Investimento mínimo – desafiando as leis da ética – e receita máxima. Meu apartamento é um desses.

Essas táticas de duvidosa ética por parte de Dona Rosana incluem: inocência, falta de memória, “pobreza absoluta” (termo usado pelo presidente Guebuza para definir o estado do País), “Joao sem Braço”, “olha-para-baixo-olha-para-o-lado-e-fica-muda”, e a pura e deslavada mentira.

A aplicaçao das supracitadas é mais ampla do que se imagina, quando se trata de ganhar dinheiro em cima do mais absurdo. Os primeiros casos que sofremos isso foi logo na compra, quando ela nos prometeu uma reforma geral e completa do Apê. Logo que chegamos isto fedia a tempero curry (indiano) podre. Na verdade parecia uma cozinha indiana largada aos ratos por seis meses. O fedor era tao intenso que nao se respirava ali. A descriçao que faço é baseada no odor captado na varanda da casa.

- Isso fede a curry hein, Dona Rosana? Tinha um indiano morando aquí? (piadinha)
-Hein? Indiano? Siiimm…
- Ahn! As vezes é isso entao…?
-Claro! É que ele nao limpava bem isto. Mas vai vir uma equipa especial de limpeza, vai tirar todos os armários, limpar por dentro, passar verniz, pintar atrás… quando chegarem isto já vai cheirar a lavanda fresca…
-Aaahn… jóia.

Quando chegamos, uma semana mais tarde, a impressao que dava era que a equipa especial era na verdade um grupo de crianças da segunda série que veio fazer excursao da aula de artes na minha casa. Os armários nem tinham sido retirados, a parede tava pintada em volta deles. Passaram um “panim” por dentro, deixando todas as baratas – em todas os estágios de evoluçao – nas frestas das portas. E o cheiro… aah, o cheiro... aquilo subia pelas narinas, bloqueava as vias respiratórias, e rapidamente conquistava o cérebro, estimulando a criaçao de enzimas do mau humor. Isso tinha que ser resolvido. Pegamos pano, bucha e faquinha (pros ovos ativos e inativos de barata) e fomos à luta.

Passamos o dia inteiro para acabar aquela merda (era só uma parte da casa inteira que tava nojenta). Tinha que descer o armário, lavar bem por dentro, tirar as baratas, lavar atrás, passar baigon, pendurar de novo. Sao tres armários horizontais de 3 metros cada. Acabado o trabalho, o alívio… vitória… respira fundo…. Nao!! Continua a p… do cheiro com força total! Fomos fungando embaixo de tudo, e descobrimos. A geladeira estava mijando. Tinha uma poça de água nojenta embaixo, de cor amarelo intenso e jeitinho de suquinho de carne podre.

Lavamos a geladeira até cair o braço. Nao adianta, a carne foi esquecida ali dentro, o suquinho de esgoto caiu no sistema interno de “lavagem”. Ok! Chama a assistencia tecnica. Vem um cara simplezinho, puxa aquela mangueirinha externa, olha dentro dela… sopra… olha para mim:

- é, patrao! Tá entupido! Tem que limpar!
-
Beleza

Já olhei para bolsa dele esperando que ele fosse tirar o equipamento. Quando olho para cima “suck”, o cara com a boca metida naquela fonte de restos mortais de carne putrefata. Igual pivete roubando gasolina de carro, ele sugava aquele líquido e fazia um esforço para tirar a boca dali antes do esgoto atingir os lábios. Nem sempre fugia a tempo, claro.

Apesar do serviço de alta qualidade, depois de 2 dias o cheiro continuava. Tive que reclamar e chamá-lo de volta. Coitado. Depois da quinta vez, desisti e coloquei um carvao lá dentro daquele trem. Obrigado, mae.

Mas o importante foi a reflexao após o evento. Horas depois, penso… ué!? O cheiro ruim nao era pelo tempero do indiano? Tudo história para vender casa.

Mas isso era só uma das promessas de reforma. Outra foi de subir a altura do chuveiro. Ok! Comprou o chuveiro e mostrou. Tinha até altura regulável. Na hora do primeiro banho vou testar… é... realmente é regulàvel, só que a altura máxima era igual à do anterior. Por que fazer isso com o cidadao? Nao sei, mas algum motivo tem que haver.

A mais recente história, que gerou a raiva suficiente para escrever isto, foi a história da energia elétrica. Além de ter me enrolado por meses para pagar as contas antigas (o que gerava cortes semanais no fornecimento), ela vem me pedir:

- Sr. Luix Paulo, eu extou a trabalhar aquí ao lado do prédio agora, e queria saber se nao tinha como a gente fazer um negócio juntos…
-
Claro, Dona Rosana. Diga lá.
- Aquí nao chega bem a energia, entao queria saber se eu podia puxar um fio do seu apartamento, e no final do mes eu te pago metade da conta.
- O que? Fazer um gato?
-
Gato? Nao… puxar energia do seu apartamento pro meu escritório… e eu pago metade da sua conta de energia.
-
(pensando em me dar bem, mas já esperando o próximo golpe) tá bom. Nao há problema.
-
Tá bom. Vou mandar o eletricista subir entao.
-
Ok. (trouxa)

Até este ponto sei que o prezado leitor já está pensando “putz! Que idiota!”, mas também nao tem a menor idéia de como eu posso me dar mal nesta, a nao ser que ela enrole o pagamento… mas da mesma forma eu poderia descontar do meu pagamento de aluguel. Mas lembrem-se que ela é a proprietária dos infernos, e é capaz de tudo.

Depois de duas semanas, pergunto-lhe:

-
E aí, Dona Rosana?! Fez o esquema?
- Aah! Nao. Resolvi colocar um contador pré-pago mesmo. Daqueles que quando voce coloca, voce só paga a quantidade que consome…
-
Hummm… que ótimo. E é caro?
-
Nao. Se quiser faço um para voce também.
- Claaro! Fantástico.

Enfim. Apago da minha memória o trato feito, né? Afinal de contas, ela já tá com um contador pré-pago.

Vou ao Brasil, tranquilo. 20 dias… férias... volto… po! Essa janela da cozinha nao fecha!? Que que é esse fio branco aqui saindo da caixa elétrica e que passa por cima da janela rumo ao pátio externo do pré... DONA ROSAAAAANAAAA!!!!!!

Quer dizer, a ilusao utilizada foi um pouco menos complexa do que tirar moeda da orelha de criança... "olha! que que é aquilo lá? o super-homem?" e foge... balançar uma mao na sua frente pra arrancar seu dinheiro com a outra... pedir 10 reais emprestados e logo fingir que nao se lembra...

por: Luis Paulo R. Camisasca. Verão de Maputo, 2008