quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

...E o pacato povo falou... e gritou, queimou, pilhou, quebrou...

Ontem passei meu primeiro dia de medo em Moçambique. Moro há 8 meses em Maputo, e até então não havia visto o lado "negro" da cidade. Isto virou um verdadeiro faroeste. Uma revolta de milhares de populares devido ao aumento de 50% na tarifa do transporte semi-coletivo (Aqui, chapas. No brasil, perueiros). Bloqueios nas estradas, carros incendiados, e confronto com a polícia, que orgulha-se em haver ferido 100, matar alguns e manter a confusão longe da área nobre.

Agora já acabou a tensão, eles voltaram ao preço anterior (previsivel) depois de um nervosismo generalizado na cidade. Minha região sempre fica protegida (perto de onde mora o presidente), mas eles conseguiram fechar a principal avenida da cidade (Eduardo Mondlane) a pedradas, e também vandalizar diversos estabelecimentos na periferia.




O motivo da revolta foi o já anunciado aumento do preço dos chamados Chapas. Um aumento repentino de 50% num preço congelado desde 2005. A justificativa principal foi a recente sequencia de aumento nos combustíveis.

Para entender melhor o impacto desse aumento na vida do trabalhador médio, dou alguns números. Uma empregada doméstica ganha $40USD. Um segurança (equivalente aos nossos porteiros) ganha entre $40 e $70. Considere que o normal é que não se pague vale-transportes.

Cada passagem custava antes do aumento $0,20. Para uma doméstica que pega dois chapas para chegar ao trabalho, $16 são gastos mensalmente em transporte (40% do orçamento). Após o aumento a passagem custaria $0.30. $24 mensais. 60% do orçamento.

Naturalmente o impacto é menor para as pessoas de maior renda. Mas se considerarmos que o salário minimo aqui é de $65, vemos que a quantidade de pessoas seriamente impactadas pelo reajuste é bastante grande.

Nesse contexto entramos no dia do prometido aumento. 05 de Fevereiro - a supertuesday para os americanos, e a chaostuesday para nós. Desde as 05:30h da manhã os passageiros já começaram a se recusar a tomar os chapas. As multidões se juntam nos pontos de chapa, os animos esquentam, e começam a caminhar em multidões rumo à cidade, para demonstrar seu repúdio ao aumento. Os que insistiam em esperar o chapa eram coagidos a desistir, às vezes à força.

Rua a rua foram se aproximando ao centro, e deixando barreiras em todas as saídas de Maputo. Incendiaram chapas, destruiram, saquearam e tentaram botar fogo em postos de gasolina. Ao saber do ataque a um de nossos postos, corri para ver do que se tratava. Quando cheguei vi um cenário de guerra. A rua vazia, conteineres no caminho... a principio segui em frente na Av. Acordos de Luzaka, uma das primeiras a ser atingida, sem saber ainda do que se tratava. Até que vi um camião de guerra, camuflado, cheio de militares armados e com máscaras de gás no topo. Passam e eu ainda estupefato sigo em frente. Vejo que todos os carros retornam e faço o mesmo. Dá tempo ainda de ver um carro com civis armados de metralhadoras seguindo em direção ao lugar de onde sai uma fumaça preta...
Na volta à zona da Baixa, Museu, as mais calmas da cidade, vi que a situação já estava espalhada. Estavam naquele momento tomando conta da principal avenida da cidade - Eduardo Mondlane. Multidões invadindo a rua nos aconselham a retornar, ameaçando apedrejar e incendiar os carros. De longe ve-se mais conteineres e sente-se o nervosismo da multidão.


Corro então para resgatar meu amigo Edson Mabote, que tinha sofrido uma tentativa de ataque num ponto de chapa e queria uma carona para casa. Vamos por ruas secundarias tentando chegar a Malhazine (periferia). Tarefa que mostra-se impossível. Acompanhamos de perto as multidões que se deslocavam rumo a mais um de nossos postos. As pessoas no sentido contrário apressavam-nos a retornar - novamente. Decido deixar o Edson na minha casa, já que havia trabalhado toda a noite.
Na volta à Total, nervoso, suado e afobado, dou o aviso aos colegas. Poucos acreditam na dimensão da coisa. No entanto, rapidamente chegam as notícias de vandalismo naquele posto, e ouvimos os disparos perto do escritório da Total. Uma multidão que se aproximava. Nós, com medo de que descobrissem e atacassem nossa sede, fugimos para o hotel ao lado. Logo os diretores se reunem e decidem fechar tanto o escritório quanto nossos postos.

O resto da tarde foi tranquila para quem estava no centro. Quem teve que ir para casa na periferia nos relata hoje a tensão, o medo, a destruição... O resultado final foram vários veículos queimados, outros tantos apedrejados, toneladas de lixo jogado na rua, dezenas de estabelecimentos comerciais foram pilhados e vandalisados... E isso lhes valeu a volta do preço da passagem para 5Mtn.

Hoje a cidade acordou de ressaca. Os chapas continuam em greve (a maioria), e algumas pessoas protestam contra a greve dos mesmos. Outros ainda aproveitam o sucesso da revolta para reivindicar uma volta atrás no aumento do preço do pãozinho e da gasolina...

Para entender o conflito é importante ver o pano de fundo. O povo vem aguentando absurdos deste Governo desde Abril de 2007, com a explosão do Paiol de Malhazine. Centenas de mortos e feridos, milhares de desalojados, muitas promessas do presidente, e pouca ação. Alguns ainda vivem em tendas improvisadas, enquanto o dinheiro de assistencia social é comido pelos burocratas e corruptos.

Outro efeito que vem estrangulando as populações mais pobres é o crescimento da inflação, sem o aumento de salários para a base da população. O crescimento economico, de 7 - 8%, beneficia os mais ricos, que absorvem bem os aumentos. Na camada mais baixa, no entanto, não há sinais evidentes de desenvolvimento. Com o salário congelado (programado para ser revisto ainda este mês), veêm os aumentos graduais comerem seu orçamento. Gasolina, pão, chapa, casa...

O povo moçambicano, já conhecido por sua passividade, explodiu. Vê-se sem opções além de protestar para que algo mude. Já não conseguem se sacrificar. Não há de onde tirar. Alguem tem que ceder, e desta vez foi o Governo.
Aqui, uma descrição mais completa e cronológica dos acontecimentos:
O jornal O País tem em sua versão online uma leitura mais fria e distante:
Tem uma carta do Manuel de Araújo que está rodando o país por e-mail e SMS. Chama-se "Carta aberta ao Presidente da Republica a proposito da revolta popular em Maputo"

7 comentários:

Anônimo disse...

Luti,

que loucura, hein!
a mãe e o pai estavam sabendo dessa confusão?
o governo daí é meio ditatorial?
bjos,

Dani

Anônimo disse...

Lu, eu e mamãe estamos lendo seu relato e estamos impressionadas... Que perigo que você correu, ainda mais no meio da guerra. Graças a Deus você está bem. Beijo Fá e Mãe

LP Camisasca disse...

Ei, família!

Eu liguei para os pais no momento da confusão, para dar informações básicas, caso ficassem sabendo de algo pela TV. Claro que tentei esconder meu próprio medo, né... :op

O governo daqui não é ditatorial, mas tem um forte resquício de comunismo. A Frelimo (o Partidão local) está no poder desde a independencia, e os políticos lá ainda são aqueles da época da luta, da guerra... uma nova geração ainda está por vir, e a oposição a se estruturar para tomar o poder.

Beijos, dani! Braço p nuno

LP Camisasca disse...

Ei, Fá e mãe!

Agora está tudo tranquilo. A sociedade ainda está de ressaca por conta dos importantes acontecimentos de terça. Recebemos diversas mensagens, alertas e convocações por SMS e e-mail. Rumores sobre greve de chapas, dos postos de gasolina, de mais protestos...

Bom... a minha análise é que já não voltam às ruas. O Governo já voltou atrás no aumento dos chapas, e acabou de anunciar também que o pãozinho não vai aumentar.

Agora, o que fica é a sensação do poder da revolta. O que é bom, para um povo acostumado a ser pisoteado e reagir com paciencia.

Curioso é que não foram os homens a sair às ruas. Eram adolescentes e senhoras (além dos malandros que se aproveitaram da ocasião para fazer algazarra). Este fenomeno ainda não entendi, mas qdo tiver uma opinião, vos digo. :op

beijos!

Anônimo disse...

Oi Lu,

que loucura,se cuida, cuidado, não ande onde estiver tumulto, nunca se sabe.
Fico triste com estas situações que se repetem no mundo sempre a população pobre dança. Corrupção é o que não falta. Espero que mantenhamo preço das passagens e do pão.
Beijos Lu, Deus te abençõe. Tia Lis.

Anônimo disse...

PÔ, Lu. Que foda! Difícil para vc e para todo mundo, né? Espero que fique bem. Bom, temos guerras aqui tb. Abção e se cuida. Ahmed

Anônimo disse...

Lu, estamos esperando novas histórias daí...
beijo e abraços
Fá e Roberto